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A propósito dos 70 anos da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS



Muito a comemorar!

“Quero trazer à memória, o que pode me dar esperança


O que nos motiva?

Antecedentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos


O verso bíblico no livro de Lamentações 3.21 sublinha o sofrimento do povo de Deus, em vista da desobediência e consequente fracasso de um projeto de nação que o levou ao cativeiro. Os versos subsequentes louvam e ressaltam a misericórdia de Deus, que não permitiu a aniquilação total da nação, mesmo diante de muita violência.


Essa memória das motivações de esperança, já no exílio, impulsiona o ânimo e renova as forças do povo de Deus, fazendo-o sonhar novamente com o projeto de libertação e de vida abundante, outrora prometido e posto a perder em razão dos descaminhos, opções equivocadas que levaram ao desterro.


Refletir sobre temas concernentes aos Direitos Humanos significa conjugar os termos violência, injustiça, misericórdia e justiça. No dia de 10 de dezembro de 2018 a Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 70 anos!

Há muito que comemorar! Não estou usando o termo comemorar no sentido comum de celebrar ou festejar, mas sim em seu sentido mais próprio, mais estrito: comemorar no sentido de trazer à memória. Devemos juntos trazer à memória as motivações que levaram a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as circunstâncias, políticas, sociais e econômicas, destacando os aspectos que ainda hoje são relevantes.


O ano de 1948 respirava ares da guerra de proporções mundiais, alastrada a partir da Europa, um saldo de milhões de mortos e outros milhões de desabrigados, passando fome, deslocados de seus países de origem. A guerra eclodiu em um ambiente permeado por governos totalitaristas, observados em vários países que viriam a se envolver na guerra.


Os governos fascistas objetivavam expandir seu território por meio de conflitos internacionais. Para isso, realizavam altos investimentos na produção de equipamentos de guerra.


Preponderantemente, iniciativas de expansão do governo nazista na Alemanha levaram ao conflito. O saldo: milhões de expropriados e assassinados sob custódia do Estado.


O que é fascismo? O pano de fundo.


Fascismo é um regime autoritário com concentração total do poder nas mãos do líder do governo que pode tomar qualquer decisão, sem consultar previamente os representantes da sociedade. Além disso, o fascismo defende uma exaltação da coletividade nacional em detrimento das culturas de outros países e identifica grupos no seio da própria sociedade como antipatriotas.


No caso da Alemanha, o regime identificou como antipatriotas, não somente adversários políticos, desde os comunistas, passando pelos socialistas, até sociais democratas e liberais, que não aderiam ostensivamente ao regime nazista, mas também identificava como inimigos a priori grupos étnicos, como os judeus e ciganos e grupos de orientação sexual diversa (um germânico considerado puro pelas leis de pureza racial de Nuremberg era conduzido a campos de concentração se fosse homoafetivo).


Também iam parar em campos de concentração quem discordasse do regime em razão de suas convicções religiosas: não somente judeus, mas Testemunhas de Jeová, Católicos e Protestantes convictos também eram arbitrariamente presos e conduzidos a campos de concentração. Para garantir a manutenção de seu governo, os líderes fascistas controlavam os meios de comunicação de massa, por onde divulgavam sua ideologia e monitoravam todas as informações disseminadas. Opinião contrária ao governo era delito punível com tortura e morte.


A violência simbólica emitida pelo discurso de ódio enquanto intentava chegar ao poder, a virtuais “inimigos da nação”, era recebida com entusiasmo pelas massas e indiferença por boa parte da classe política e intelectual. Isso redundou em violência efetiva. Na prática, todos os grupos, fossem políticos, religiosos ou étnicos, considerados indesejáveis por não aderirem ao projeto uniformizador fascista foram sistematicamente aprisionados sem devido processo legal e também de forma sistemática, mortos em campos de concentração e câmaras de gás.


Esse é o pano de fundo da Declaração Universal dos Direitos Humanos: a denúncia de que um sistema de governo não tem legitimidade para segregar e eliminar setores da sociedade que tem posição ideológica, seja política, econômica, étnica ou religiosa, diversa do sistema dominante.

As nações se reúnem e expressam que os valores universais de respeito à vida, às diversas formas de liberdade de expressão política, religiosa devam ser incorporados aos valores de cada nação.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Libelo contra o fascismo


Em 1948, a nova Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, sob a presidência de Eleanor Roosevelt, viúva do presidente Franklin Roosevelt, defensora dos direitos humanos e delegada dos Estados Unidos nas Nações Unidas, elaborou o rascunho do documento que viria a converter–se na Declaração Universal dos Direitos Humanos – esta foi adotada pelas Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948.


O seu preâmbulo e no Artigo 1º, a Declaração se refere de forma inequívoca o pano de fundo inspirador:


O desconhecimento e o desprezo dos direitos humanos conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade, e o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem... Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.


A Declaração Universal de Direitos Humanos, a partir daquela realidade de genocídio e banalização da vida, decantou normas pretéritas que visavam à proteção de direitos concernentes à vida e à liberdade e serviu de inspiração para legislações constitucionais ulteriores das nações democráticas.

Estabelece então, critérios fundamentais para que as nações pautem suas ações de Estado e de governo, tenham respeito à vida, não mais violem direitos dispondo arbitrariamente da vida e da dignidade de seus cidadãos, mas protegendo-os da violência e da ameaça de direitos.


Direitos Humanos para humanos direitos?


No Brasil, tem se propagado na mídia e na sociedade, ideias que revelam uma concepção equivocada sobre o significado e as motivações dos Direitos Humanos, tratando-os como se fossem um estorvo à sociedade saudável e fragilizadores do Estado e suas instituições. Considera-se, erroneamente, que se defende “somente” os criminosos, os “inimigos” da sociedade. Concepção esta que se verifica também no seio da Igreja, porque inserida na sociedade, ela reproduz esse discurso. Volta-se à discussão sobre a natureza do Estado e o desafio de conviver com o diferente, o qual deve ser arbitrado pelo Estado Democrático de Direito, que não pode ser benevolente com uns e violento com outros.


A maior dificuldade de entendimento da Declaração Universal de Direitos Humanos é justamente a prevenção de violência arbitrária por parte do Estado, já que ele detém o monopólio da violência, com a finalidade exclusiva de defender o cidadão. A tentativa fascista de definir quem é “humano direito”, se mostrou terrivelmente equivocada, dando azo a arbitrariedades em ampla escala, das quais todos/as se tornaram vítimas.


Quem está sob custódia do Estado, em caso de prisão por prática de delito deve contar com a proteção de sua integridade física e psíquica, porque o delito não o faz menos humano. Negociar e relativizar a humanidade de alguém é relativizar a própria humanidade. Trata-se da discussão sobre a natureza do Estado que promove o bem comum, portanto não pode abrir exceções, sob pena da exceção se tornar regra.


Outro aspecto que motivou a Declaração Universal dos Direitos Humanos é o perigo efetivo do discurso de ódio. Tal discurso leva à institucionalização da violência. Estigmatizar grupos em razão de sua condição étnica, ideológica, seja ela política ou religiosa implica em repetir os erros do passado e, em última análise tornar a todos /as vítimas em potencial.

Aceitar que o Estado deve encampar a violência própria do senso comum de vingança diante dos desafetos ideológicos é correr o risco de esgarçar o tecido social. Esse perigo na sociedade brasileira é iminente! O escritor das Lamentações deplora o desvio de finalidade do reino de Judá, levando-o à tragédia do exílio e do quase extermínio. Porém confia na misericórdia de Deus a causa de todos/as não serem consumidos/as (verso 22).


Falar em Direitos Humanos é ter esperança de que os diferentes podem conviver, sem cogitar a destruição de um pelo outro e que o Estado deve ser garantidor das liberdades, religiosa e política, como expressão da misericórdia Divina para com o ser humano.


Nesse tempo de Advento, refletimos sobre o nascimento de Jesus, o Deus encarnado e identificado com a condição humana de forma radical. Ele nasce em local improvisado, pois seus pais deviam obedecer a um recenseamento promovido por um governante estrangeiro e com finalidade de aliciar soldados e cobrar impostos. Nasce em uma manjedoura. Já adulto, não considerou menos humana a mulher acusada de adultério; menos humanos o cobrador de impostos; o soldado a serviço do opressor; e nem mesmo o criminoso crucificado a seu lado.


Quando a Igreja opta pela defesa dos Direitos Humanos não se circunscreve a aderir a uma agenda ideológica, mas um reflexo de sua adesão ao Evangelho, pois aponta que Deus se fez humano a fim de ensinar o amor e a misericórdia, sem distinção.

Temos sim, muito que comemorar: trazer à memória que Deus é misericordioso e por isso, nós também devemos ser.


Jair Alves

Pastor e Coordenador da Assessoria Regional de Promoção dos Direitos Humanos


Declaração Universal dos Direitos Humanos - Fonte: UNESDOC - UNESCO Digital Library

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