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Do Antigo Testamento (06)

Javé na história da salvação no Primeiro Testamento: dois dedos de prosa teológica sobre tradições (6)

Pés de Jesus
25 Artigos de Fé da Igreja Metodista. Artigo 6º – Do Antigo Testamento

O Antigo Testamento não está em contradição com o Novo, pois tanto no Antigo como no Novo Testamento a vida eterna é oferecida à humanidade por Cristo, que é o único mediador entre Deus e o homem, sendo Ele mesmo Deus e Homem; portanto, não se deve dar ouvidos àqueles que dizem que os patriarcas tinham em vista somente promessas transitórias. Embora a lei dada por Deus a Moisés, quanto às cerimônias e ritos, não se aplique aos cristãos, nem tão pouco os seus preceitos civis devam ser necessariamente aceites por qualquer governo, nenhum cristão está isento de obedecer aos mandamentos chamados morais.

 

A grande mudança na concepção coletiva de Deus ocorreu no período pós-guerra, ou seja, após 1945; a restauração das relações judaico-cristãs deu-se, de um lado, a partir do reconhecimento dos cristãos na comunhão da Bĕrît (“Aliança”) primeiramente prometida ao povo Israel, e de outro, a contraposição à concepção de que a nova aliança do Novo Testamento substitui, ultrapassa e sobrepuja a Primeira.


As bases ainda no tempo presente podem ser fixadas no fato de a Aliança não depender do conceito de Bĕrît, porquanto na relação com Javé poucas vezes aparece esta designação no Primeiro Testamento. A função restritiva é pretensa e infundada segundo as narrações legais e historiográficas mais antigas. Ela funda factualmente na elaboração da culpa, por isso o motivo dos registros no final do século 8º e século 7º a.C. acerca da queda do Israel Norte (ocorrida em c. 722 a.C.), em Êxodo 32–34, consiste em justificar a catástrofe. Aí encontramos o “perdão simbolizado pela renovação das tábuas” (Crüsemann, 2009, p. 429).


O Primeiro Testamento é um livro histórico, no qual a fala e os atos divinos dizem respeito ao antigo Israel, aos povos e ao mundo. Podemos definir essa história como “história da salvação” desde o início, pois a criação é uma obra salvífica.

Javé é “glorificado” nos seus atos, tais acontecimentos podiam ser percebidos como verdadeiros milagres; nesse caso, a alocução dirigia-se antes de tudo ao antigo Israel, deste modo Israel pôde reconhecer a si mesmo na vontade de Deus.


Precipuamente nos atos – assim é o credo israelita mais antigo, a origem aramita marginal, a evolução social e biológica, a escravidão e a libertação do Egito (Deuteronômio 26.5,6) –, mas no período do exílio na Babilônia (século 6º a.C.) o relacionamento com Javé passou a ser por meio do diálogo (Isaías 45.11) e quando Javé se cala é para refletir acerca do que falar e fazer (Isaías 42.14). A relação então se estabelece nessas linguagens, nas quais Israel obtém um conhecimento e uma consciência sempre novos da sua condição humana diante de Deus, reconhecíveis pelas contínuas renovações por gerações posteriores que necessitavam de reinterpretações e incorporações para o seu tempo. Desse modo, tinha-se a consciência da instrução escrita – foi “escrita para nós”.


No entanto,

na história da salvação há a Aliança, em cuja história encontramos o ocultamento de Deus; nela, Javé é glorificado por seu eleito, Israel, e a essa história é incorporado o juízo divino.

Isso é resultado do malogro humano. Nesse contexto, encontramos numa camada redacional antiga do livro do profeta Isaías a suposição de conhecimento teológico (Isaías 29.14b: “e morra a sabedoria dos seus sábios” [wĕ’ābĕdāh ḥākĕmat ḥăkāmāyw][1]).


Frente às ameaças, catástrofes e malogros, o posicionamento da divindade em relação ao povo diz respeito à existência de ambos como agentes históricos. Para alcançar as demais grandezas socioétnicas, para além da terra de Kinaḫḫu (Canaan), e as novas identidades de cultura religiosa, como aconteceu posteriormente em relação ao cristianismo, a Bĕrît do antigo Israel sempre foi vivida como uma “nova aliança”, seja pelo fato de reagir a uma presumida ruptura de Deus com seu povo culposo, seja no sentido de “compromisso”. Eis alguns exemplares:


Gênesis 9, Noé

Gênesis 15 e 17, Abraham

Êxodo 19 e 24, Sinai

Êxodo 34.10, 27,28, perdão após a catástrofe do Reino do Norte

Josué 24, Josué e a aliança siquemita

2 Reis 23, Josias

Jeremias 31.31-35, aliança destinada aos exilados e para a colônia persa de Yehud


Afora os Salmos – cuja perspectivação serve-se ao ingresso de prosélitos no serviço do culto e a interpelação não se confunde com uma mudança na vocação –, apenas no período tardio do judaísmo antigo acessamos o contexto em que a Bĕrît passa a ser interpretada como “aliança” validada teologicamente como compromisso salvífico. De acordo com essa compreensão, esboçada no período Persa Aquemênida e elaborada no período dos Asmoneus (séculos 6º – 2º a.C.), as nações passam a ser incluídas na Bĕrît (Gênesis 9 e Zacarias 11), circunstancialmente para a preservação na terra e para proveito dos israelitas.


Quando as prerrogativas de Israel são reafirmadas e o perdão de erros são reassumidos por Deus, o relacionamento dos não-israelitas com Deus torna-se uma possibilidade escatológica, mas ainda não é a Bĕrît – essa permanece com Israel. Isso não soa estranho, pois a história da salvação contada por um povo sempre reserva a esse povo a primazia do bem-estar material ou imaterial, principalmente em situações de conflitos externos. Em situações de relações diplomáticas amistosas são incluídos outros povos; relativamente à interação, novas divindades são adotadas.


Com efeito, o antigo Israel colonial talvez seja o único povo do antigo Oriente-Próximo a inibir a transmissão da religião por meio da interação cultural. Pode-se encontrar o motivo no projeto sacerdotal de construção de uma identidade biológica, inextricavelmente ligado à violenta exclusão de gente e culturas, justificado na mudança das instruções deuteronomísticas (Tôrāh, tôrôt) em leis apodíticas (‘edāh,‘edôt). Isso no Primeiro Testamento foi realizado sob as ordens do comissário persa Esdras (cf. Esdras 7–10).


Nada obstante,

o poder do Deus Javé e a sua graça – fundamentos de sua soberania e abertura para a comunhão – romperam a imposição do culto anicônico, a exclusão identitária, a fronteira mapográfica e as interpretações teológico-sacerdotais.

Por várias formas, mas especialmente pelo poder e graça, as ações divinas expressam-se em relação ao ser humano, na contracorrente do sectarismo. Na prática, fica evidente, a expressão de soberania tem sua razão de ser na relação comunitária, onde se dá o testemunho da experiência da salvação – o que não impede a ação de graças individual.


No consolidar das relações, a dependência humana é a chave histórica para “despertar”, para usar uma metáfora, o interesse de Deus pelo cotidiano da mulher e do homem; a intimidade comunal, ou seja, o cuidado divino (yāda‘), justifica o direito divino de emitir seus juízos no contexto da exigência de obediência e qualifica as reprimendas. As concepções de fé firmam-se no conceito do ser divino com o ser humano – que desce à terra para libertar escravos ou migra com o povo para guiá-lo e protegê-lo –, próprias do sentimento existencial israelita, das tradições do ambiente doméstico, e tornadas visíveis pelo cristianismo por meio de Jesus de Nazaré.


Com efeito, a comunhão entre Javé e o ser humano emerge nas tradições dos pequenos grupos sociais, mais tarde nas linhagens de parentesco biológico. Os elementos teofóricos (ya, el) e de parentela (am) caracterizam a intimidade, regida pelo conhecimento (da‘at). Num antigo postulado de Georg Fohrer (1982, p. 157), “no Antigo Testamento a expressão ‘conhecer’ significa íntima familiaridade com o caráter, a mentalidade e a alma de outro. Consequentemente, ‘conhecer Deus’ significa manter uma mútua e pessoal relação de íntima familiaridade e comunhão”. Aí está a estrutura. É a fé em estado único, com o Deus como autor da ação, na medida em que gera ao mesmo tempo povocomunidade crentecomunidade crenteindivíduo, ambos aliados com esse mesmo Deus numa simultaneidade única dentro da história da salvação.


Por ser histórica, a comunhão podia ser rompida, os historiógrafos israelitas sabiam disso:


Deuteronômio 8: v. 19 “E acontecerá se esquecer, por o esqueceres a Javé teu Deus (’ĕlōheykā) e andares detrás dos deuses (’ĕlōhîm) outros, e servires e te prostrares para eles, advertirei contra vós hoje que: morrer morrereis (’ābōd tō’bēdûn). v. 20 Como as nações (kaggôyim) que Javé destruiu de diante de vós, assim morrereis; visto que não atentastes na voz (tišmĕ‘ûn bĕqôl) de Javé, vosso Deus”.


“O israelita como indivíduo se sabia membro do conjunto, e o povo se via a si mesmo como uma pessoa global, como um grande eu” (PREUẞ, 1999, p. 109). Esta compreensão teológica coloca no centro da geografia humana o povo de Israel, postulada pelos sacerdotados do judaísmo antigo mas que depende da disposição piedosa do indivíduo como agente em favor da comunidade.

A cumplicidade que diferenciava a religião do antigo Israel de seu entorno aramita é notada nas ações de piedade coletivas, contrapondo-se ao individualismo, um aprofundamento espiritual nas relações com Deus assimilado pelo cristianismo;

mas também na conduta cotidiana, pois no que diz respeito ao equilíbrio interno, a ética estava marcada pela comunidade.


Na comunidade acontece o conhecimento de Deus, a que Israel respondia com a . Gerhard von Rad lembrou da dificuldade de terminologia ao falar da “fé”, pelo fato de inexistir no Primeiro Testamento um termo que significasse a doação do ser humano a Deus em sua totalidade. Não obstante, é algo que supõe sempre uma intervenção, uma iniciativa de Deus. Essa fé precede o acontecimento divino, e se dirige a um cumprimento escatológico com perspectivas totalmente novas; no Novo Testamento, essa mudança ocorreu fundamentalmente porque a ação divina realizou-se em Jesus de Nazaré. “Assim pois, poderíamos dizer que a existência de Israel se repete na comunidade cristã, no sentido de que se põe em movimento desde uma promessa até um cumprimento; também aqui se encontra em peregrinação e caminha até o descanso (Hb 4.1-2)” (RAD, 2000, p. 495).


Esta particularidade foi cuidada pelo apóstolo Paulo, levava-o a evitar a extensão da identidade religiosa de Israel em outras socioetnias, evitando assim a modificação do conceito de eleição; nestes termos:


Romanos 9.4: “Os quais são israelitas, dos quais a adoção e a glória e as alianças e a entrega da lei (nomostôrāh) e o culto e as promessas”.

Romanos 11.27: “E esta (é) para eles a de mim (= minha) aliança, quando eu remover os pecados deles”.

Em linhas gerais, o cristianismo afilia-se como povo de Deus concebido como um “corpo” (cf. Efésios 5; 1 Coríntios 12). Esse espírito propicia a rememoração dos pais, numa referência às gerações anteriores. Por esta mentalidade, no sentido positivo, quando alguém morre, junta-se a seus pais; no sentido negativo, quando alguém comete um erro a avaliação é realizada tendo em vista uma reprovação cometida por um ancestral.


Em adição, uma poesia templar de estilo sapiencial no Primeiro Testamento enuncia uma doutrina de valor universal, está no Salmo 62.9-12 (na Bíblia hebraica, Salmo 62.10-13). Basta a leitura dos dois últimos versículos para perceber que, não apenas teológica mas espiritualmente, temos uma proposta de comunhão em fidelidade:


v.11 Uma (’aḥat) palavra de Deus, duas vezes ouvi (šĕtayim-zû šāmā‘ĕtî):

“Que o poder pertence a Deus (kî ‘ōz lē’lōhîm)”.

v.12 E para ti, meu Senhor (ûlĕkā-’ădōnāy), misericórdia (ḥāsed),

pois tu retribuirás a cada um (lĕ’îš = para o homem) conforme sua conduta (kĕma‘ăśēhû).

João Batista Ribeiro Santos

Pastor na Igreja Metodista em Guaianazes, biblista e historiador, docente do Antigo Testamento na Faculdade de Teologia/Umesp.


[1] Todas as traduções e transliterações de textos bíblicos citados neste artigo foram realizadas pelo autor a partir das edições hebraica e latina, ambas registradas nas “referências bibliográficas”.



Referências bibliográficas:

CRÜSEMANN, Frank. “A eles pertencem ... as alianças” (Romanos 9.4): a teologia da aliança do AntigoTestamento e o diálogo judaico-cristão. In: Cânon e história social: ensaios sobre o Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2009, p. 423-446.


ELLIGER, Karl; RUDOLPH, Wilhelm (Hrsg.). Biblia Hebraica Stuttgartensia. 5. aufl. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1997.


FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.


PREUẞ, Horst Dietrich. Teología del Antiguo Testamento. Vol. I. Yahvé elige y obliga. Bilbao: Editorial Desclée De Brouwer, 1999.


RAD, Gerhard von. Teología del Antiguo Testamento. Vol. II: Teología de las tradiciones proféticas de Israel. 7 ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2000.


WEBER, Robert; GRYSON, Roger (Hrsg.). Biblia Sacra iuxta Vulgatam Versionem. 5. aufl. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2007.

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